Cocaina

A necessidade de escrever sobre esse assunto ocorreu pelo número cada vez maior de pacientes que atendo sob dependência química da cocaína e também pela correlação de mortes súbitas de artistas conhecidos mundialmente ao uso abusivo dessa substância.

Um assunto complexo, de elevada relevância ainda nos dias de hoje.

O artigo é apresentado para que tenhamos conhecimento sobre essa substância, seus efeitos, as causas de dependência, os possíveis tratamentos, como também em desmistificarmos o preconceito aos usuários.

Quando temos conhecimento mais aprofundado sobre um assunto adquirimos uma maior capacidade para lidarmos com ele. E se há algo que é extremamente prejudicial em relação a adição as drogas é o preconceito. Ninguém usa drogas porque quer, porque é fraco, porque não foi educado corretamente ou não teve família presente. Esse é o primeiro conceito que devemos considerar. A adição a drogas pode estar presente em qualquer núcleo familiar, acredite.

O primeiro conceito em relação a adição é que ela pode ocorrer por gatilhos e se manifestar através de vício nas mais diferentes formas. Todos temos vícios. Uns mais ou menos graves, mas todos eles machucam, seja socialmente, financeiramente ou fisicamente. Todas as pessoas possuem o seu ponto fraco. Aquela questão que foge o auto controle. O vício em compras, bebidas, remédio, jogo, sexo, pornografia, comida, drogas, limpeza, entre outros traz malefícios à aquele que o possui. Dependendo do grau de adição, o individuo pode ser levado à seu franco declínio pessoal e profissional.

Após deixarmos o preconceito de lado e entendermos que estamos lidando com pessoas comuns, que precisam de ajuda profissional para lidar com sua adição, vamos entender o porquê da cocaína ainda, nos dias de hoje, ser a grande responsável pelo desespero de famílias e pela morte precoce de grandes talentos nas mais diversas profissões.


O que é a cocaína

A cocaína é uma benzoilmetilecgonina, sendo o principal alcalóide existente nas folhas de Erythroxylon coca e de outras espécies do mesmo gênero. Apresenta-se em quantidades que variam de 0,5 a 1,8 % das folhas dessa planta.

As espécies de coca são cultivadas, quase exclusivamente na América do Sul, principalmente no Peru, Bolívia, Colômbia, Equador e Brasil.

A cocaína é extraída das folhas da planta, em duas fases. Na primeira, as folhas são prensadas com ácido sulfúrico, querosene ou gasolina, formando a pasta de coca, que contém até 90 % de sulfato de cocaína. Na segunda, a pasta é tratada com ácido clorídrico formando o cloridrato de cocaína, pó branco e cristalino, que pode ser introduzido no organismo por aspiração nasal, contato com mucosa oral, vaginal e anal ou injeção endovenosa.

Nesses processos de refino, o da cocaína é um que ganhou a adição de mais e mais substâncias tóxicas, mais baratas que a própria cocaína, com a finalidade de potencializar o seu efeito alucinógeno e aditivo e aumentar o lucro dos traficantes.

Os adulterantes mais comuns são os anestésicos (e estimulantes) como lidocaína e procaína, além de cafeína. A droga também é misturada com metilanfetamina, metilfenidato, efedrina, manitol, inositol, bicarbonato de sódio, sacarina, farinha de arroz branco, pó de mármore e de vidro, maltodextrina e asbesto.

O levamisol é um dos mais preocupantes. Este é um medicamento anti-helmíntico usado para matar vermes parasitas. Ele causa agranulocitose, que é uma doença que reduz a produção de células de defesa do organismo, os leucócitos e suas formas jovens.

A benzocaína e a lidocaína, reduzem o nível de cocaína necessário para dar aos usuários a sensação de que eles realmente inalaram a droga, pois podem causar a mesma sensação de entorpecimento.

Para ter uma ideia, a pureza média da cocaína na Inglaterra não é maior do que 20 ou 30%. Os outros 80 ou 70% ficam por conta dos agentes adulterantes. 

O asbesto, um pó branco mineral, é o grande responsável pela destruição de tecidos do nariz e pulmonares. A asbestose, doença causada pela inalação do asbesto, é considerada uma pneumoconiose, ou seja, uma doença do sistema respiratório que decorre da aspiração do asbesto e caracteriza-se por fibrose pulmonar crônica e irreversível, tendo como consequência a insuficiência respiratória e indicação de transplante pulmonar.


Efeitos da cocaína

O vício, independente à que substância ou ato, ocorre pelo fato de nos sentirmos bem quando expostos a ele. Simplesmente porque nos dá prazer.

O prazer é a sensação que temos quando nosso cérebro é inundado por neurotransmissores: dopamina, serotonina e noradrenalina. Mais um grande motivo para não termos preconceito e julgamento em relação aos adictos. Todas as pessoas buscam prazer e encontram nas suas mais diversas formas.

A cocaína produz um efeito no sistema nervoso central de aumentar as concentrações de dopamina, serotonina e noradrenalina e estimulam nosso cérebro a trabalhar melhor e mais feliz.

Esses neurotransmissores são responsáveis pelos pensamentos positivos. Aumentam a sua energia, traduzem felicidade, euforia, grandiosidade, bom humor e autoestima elevada, além de reduzirem o apetite e causarem perda de peso.

Essas sensações são incríveis. E são elas que estimulam o uso cada vez mais frequente.

O usuário da cocaína percebe que sua performance no trabalho é melhor, seu contato social é mais fácil, ele tem menos sono, menos apetite, raciocínio rápido e criativo, portanto ele se sente mais feliz.

Esse comportamento começa a ser percebido pelos seus colegas e familiares, mas inicialmente como algo bem legal. Todos gostaríamos de estar felizes o tempo todo. Deixarmos a resolução dos problemas para o dia seguinte ou nem mesmo termos de lidar com os nossos problemas e frustrações pode nos dar uma sensação maravilhosa. Esse é o mecanismo do vício.

Inicialmente, os prejuízos são pequenos perto da maravilhosa sensação e o pulo para a dependência ocorre mais rápido do que se imagina. Todo usuário no início tem a certeza do seu autocontrole e de sua independência, afirma pra si mesmo que para de usar quando quiser. Sempre se convence de que não depende da droga para nada e que só usa por diversão. Mas o mecanismo neurológico da abstinência é mais forte e a vontade ou fissura aparece cada vez mais frequente.


Efeitos colaterais clínicos

Os efeitos clínicos após o uso da cocaína consistem em tremores, pupilas dilatadas, tontura, movimentos repetitivos como os tiques, agitação, insônia, perda de apetite e de peso.

As dificuldades respiratórias aparecem, pois a mucosa nasal e os pulmões estão congestionados de pó com tantas substâncias tóxicas e de difícil absorção. Por mais que te prometam que a droga é a mais pura do mercado, acredite, não é!

Secreção de muco e sangramentos nasais são comuns. A destruição das vias respiratórias, muitas vezes, precisa de correção cirúrgica, com um medico especialista.

Já na apresentação da cocaína injetável, identificamos um grande processo inflamatório nas artérias puncionadas, podendo ser graves com tromboses e infecções.

A infecção de pele e das arterias pode evoluir para sepse e endocardite infecciosa, uma doença nas válvulas do coração, que demanda um tratamento longo de antibióticos combinados e em alguns casos resolução somente com a troca cirúrgica dessa válvula cardiaca. A taxa de mortalidade dessa condição é bem alta.

A má higiene bucal encontrada nos pacientes nesse estágio de dependência química também serve de porta de entrada para as bactérias da cavidade oral percorrerem a corrente sanguínea e atingirem as válvulas cardíacas.

O compartilhamento de seringas para a infusão da cocaína nessa forma, a falta de autocontrole e autocuidado dos usuários sob qualquer outra forma, também promovem relações sexuais com múltiplos parceiros e sem proteção, aumentando a transmissibilidade de doenças venéreas, do HIV e da Hepatite C e sifilis.

Os órgãos sexuais, também se encontram sem aporte sanguíneo adequado, a ereção, ejaculação e o orgasmo feminino desaparecem.

A violência física e os ferimentos por armas brancas e de fogo são frequentes causas de hospitalização dos usuários. A prostituição pela troca por doses de cocaína e seus derivados é ato corriqueiro.

Com o passar do tempo, a saúde vai embora e não há mais lar, família, futuro, planos, dia ou noite, auto crítica e nem higiene pessoal.

A cocaína promove a contração das artérias o que acarreta hipertensão arterial, crises convulsivas, arritmias, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, insuficiência hepática respiratória e renal.

Os quadros de overdose são o colapso do sistema cardiovascular que se não revertidos em poucos minutos são fatais.


Tolerância

A tolerância à cocaína acontece de maneira progressiva. Qualquer substância que atua no sistema nervoso central ocupa os neuroreceptores e produzem uma cascata de ações. Os receptores neurológicos ficam ocupados por um tempo sem espaço para receberem mais e mais estímulos.

A busca por mais prazer, a fissura ou o craving, termo utilizado em inglês, costumam acontecer em menor tempo que a liberação dos neuroreceptores.

Nesse momento o individuo percebe que mesmo utilizando maiores doses e em com maior frequência, ele não atinge o pico de euforia desejado e então se depara com a tolerância.

Nesse estágio, a cocaína começa a ser utilizada sob sua forma injetável ou em associação a outras drogas como álcool, heroína e crack, pela busca de mais e mais prazer.

A cocaína sob sua forma injetável ou as drogas derivadas, como a heroína e crack atingem picos ativos mais rapidamente. A ação rápida e mais potente se torna o novo objetivo. A “onda” é cada vez mais prazerosa e viciante.

E é nesse estagio que os adictos se deparam com a overdose, que como o próprio nome diz, a dose é acima do tolerável pelo seu organismo.


Abstinência e Tratamento

O uso abusivo da cocaína acarreta uma desregulação no sistema glutaminergico e gabaminérgico que modulam a produção de dopamina.

Portanto, na abstinência, o aparecimento de uma tristeza profunda, pânico, paranoia, irritabilidade são frequentes. São motivos mais do que suficientes para o usuário querer retornar ao estado de euforia. Com o passar das horas aparecem sintomas orgânicos como sudorese fria, dores abdominais, agitação psicomotora, tremores, náuseas, vômitos, e crises convulsivas. Esse período é muito difícil e deve ser acompanhado por familiares e equipe multidisciplinar para devido acolhimento e cuidados médicos necessários, na maioria das vezes em ambiente hospitalar.

O tratamento agudo da crise de abstinência consiste em hidratação, monitorização dos sinais vitais e uso de medicamentos como benzodiazepínicos e outros analgésicos e sedativos.

O tratamento crônico para evitar as recaídas e melhorar a condução dos neurotransmissores pode ser baseado em anticonvulsivantes que melhoram o sistema gabaminergico, os antidepressivos que melhoram os níveis de dopamina, serotonina e noradrenalina. Alguns antipsicóticos ajudam bastante em reduzir os pensamentos negativos, melhoram o apetite e possuem um papel importante para evitar a recaída.

Dois tratamentos encontram-se bem promissores:

A medicina Canabinoide que visa melhoras os níveis de neurotransmissores e ajudam bastante a controlar os sintomas de depressão, ansiedade, insomnia e dores crônicas como também auxiliam diretamente na redução de fissura e abstinência.


Vacina Anticocaína:

Ainda não disponível no Brasil, já é utilizada em grandes centros americanos e vem apresentando bons resultados quando utilizados conjuntamente a grupos de reabilitação, suporte familiar e psiquiátrico.

Alguns filmes e séries retratam essa realidade:

Euphoria – Séire de 3 temporadas - HBO max – A protagonista da série, a atriz, atua de maneira brilhante, revelando os períodos de extase quando em uso das mais diferentes drogas estimulantes e inclusive sedativos, como também os difíceis períodos de agressividade na abstinência. O retrato sobre a importância da presença dos familiares e participação nos grupos de Associações de dependentes químicos como da dificuldade de auxílio do sistema de saúde, mesmo que nos EUA, são pontos cruciais da série que valem uma boa reflexão. Gosto também da retratação do envolvimento das drogas com o mundo do crime, eles sempre caminham juntos de uma maneira desastrosa. A série é incrível, bem realista, difícil de ser assistida em vários momentos, mas de uma relevância enorme na atualidade. A série ainda traz outros assuntos importantes como abuso sexual infantil, pornografia, transgenericidade e umas boas análises comportamentais e das relações interpessoais dos jovens dos anos 2020.

Four Good Days – Filme – As atrizes Gleen Close e Mila Kunis, interpretam mãe e filha, numa relação conflituosa com um show de atuação de ambas as partes. Não tem como retratar dependência química de uma maneira suave e esse filme faz jus a toda degradação que a droga causa no ser humano. Mesmo sendo um filme pesado, ele consegue trazer amor ao coração.

Espero que tenham gostado do artigo e encontrado informações importantes sobre esse assunto polêmico, atual e necessário. Algumas mensagens como o não julgamento e não preconceito aos usuários e a informação importante de que são indivíduos que precisam de ajuda, devem estar sempre em nossas mentes.

Um agradecimento especial a meus colegas médicos, psicólogos, terapeutas, cirurgiões, enfermeiros que enfrentam essa árdua batalha comigo no dia a dia.